sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Feitos de sal, tempo e sol


Está registrado na História: a primeira geladeira surgiu no século 19, em meados de 1834, nos Estados Unidos, pelas mãos do inventor Jacob Perkins. No Brasil, só chegou em 1934. Mas antes desse período, muito antes, aliás, a humanidade já tinha os seus artifícios para dar conta do mais imediato dos instintos primitivos - a fome. Por meio do sal, obteve a técnica da desidratação e secagem, na qual se procura remover ou diminuir a quantidade de água no alimento. Como o líquido, formado pelas moléculas H²O, é essencial para a vida, evitava-se que fossem criadas condições para o desenvolvimento de bactérias e micro-organismos.
Devido à importância da comida para a sobrevivência, o método de conservação pelo sal é uma das tecnologias mais antigas praticadas pelo homem. Há dois mil anos a.C, o tempero já era utilizado na China, Babilônia e no Egito com essa finalidade. Bem antes das primeiras fábricas de processamento de pescados surgirem na Noruega, no século IX, os romanos já salgavam peixes em tanques no Mediterrâneo e os vikings desidratavam o bacalhau com a especiaria e deixavam secar ao ar livre.
Pelas terras tupiniquins, a técnica só chegou com os portugueses, que rapidamente a implantaram durante o período colonial, como registrou o poeta viajante Pyrard de Laval, na Bahia, em 1610, no artigo “Na Bahia Colonial”. “É impossível terem-se carnes mais gordas, mais tenras e de melhor sabor. Salgam as carnes, cortam-na em pedaços bastante largos, mas pouco espessos. Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol; quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo”. Desse tempo, e falando especificamente da região Nordeste, herdamos a carne de sol. “Na verdade, deveria se chamar carne de vento, uma vez que o controle de sua transformação é muito mais feito pela combinação do ar e do sal, do que propriamente pelo sol”, sugere o pesquisador e sociólogo em alimentação Raul Lody.
Bisneto de um produtor de carne de sol, no interior da Paraíba, que passou a tradição adiante para a família, o chef Wanderson Medeiros carrega nas costas 122 anos de expertise na produção do insumo e explica com legítimo empirismo: “Leva o sobrenome ‘de sol’ porque era retirada da cura, feita nos próprios quintais das casas, nos primeiros raios da manhã”. Como era uma fórmula bastante executada no interior de alguns estados do Nordeste, durante a noite e na madrugada, horários nos quais a carne ficava curando, a temperatura era bastante fria, o que potencializava a técnica.
Com o advento da geladeira, e até mesmo do condicionador de ar, a técnica continua a mesma, mas muda o artefato tecnológico. Proprietário e mentor gastronômico do Parraxaxá, o empresário Bruno Catão produz mensalmente cerca de uma tonelada de carne de sol no próprio restaurante. “Utilizamos os cortes do contrafilé e filé mignon, e, para cada quilo, usamos 60 gramas de sal fino para curar a carne, que deve estar com cortes para que o condimento penetre com mais facilidade”, explica.
Em seguida, a carne é deixada por quatro horas em uma câmara fria tal qual uma geladeira. Após esse tempo, verifica-se se existe algum ponto vermelho na peça, já que o sal escurece a proteína. Se houver alguma área não curada, identificada pelo tom rubro, põe-se mais sal na região e leva-se a carne ao congelador por cinco dias. “Depois desse tempo, a carne de sol já está pronta. Para o consumo, é necessário lavar a carne e deixá-la repousando em uma tigela com água por trinta minutos. Faça isso três vezes e finalize da forma que quiser: na brasa, no forno, frita na manteiga de garrafa”, sugere Catão.
E o charque?
Talvez alguns pequenos e modestos fatos históricos possam ajudar a explicar melhor a atual conjuntura socioeconômica e cultural do mundo do que os grandes acontecimentos - como sugerem os livros didáticos. Pode-se dizer que a propriedade conservante do sal foi um fator que influiu decisivamente na ocupação do território brasileiro. “O char­que, outro resultado dessa técnica, junto à farinha de mandioca, foi a base da alimentação dos boiadeiros nordestinos que avançaram pelo interior em direção ao Sul do País, prospectando terras, bem como dos bandeirantes paulistas que seguiram pelo noroeste em busca de novas riquezas”, lembra Lody.
Ao contrário da carne de sol, o charque não necessita de refrigeração para sua desidratação. O montante produtivo também se destaca: é feito em larga escala e transportado por longas distâncias. No preparo, a carne bovina é desossada, cortada em largos e delgados pedaços, conhecidos como mantas - salgadas com bastante sal (cerca de 2cm por cima das peças), empilhadas e postas em galpões arejados. Sempre se escolhe cortes ricos em gordura para evitar que a carne fique seca. Para facilitar o processo, são constantemente mudadas de posição. Após essa etapa, são rapidamente lavadas para a retirada do excesso do sal, seguindo para exposição solar.

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