Uma edição especial (disponível em CD, vinil e download digital) chegou recentemente às lojas para celebrar a data. Além das faixas originais remasterizadas, a gravadora Tuff Gong (criada por Bob Marley) incluiu a canção Smile Jamaica na seleção. Lançada originalmente no lado B do compacto Satisfy my soul, a música carrega o mesmo nome do festival no qual Bob se apresentou em 1976, poucos dias depois de levar um tiro em casa, ainda com os ferimentos à mostra.
O lançamento traz, ainda, um segundo disco, com o raro concerto gravado em Roterdã, na Holanda, em 7 de julho de 1978, quando o rastaman e a companheira banda The Wailers apresentaram ao público europeu o repertório de Kaya. “Cantar sobre o sofrimento não é algo somente profundo. Queremos que nossa gente viva feliz”, poetizou na época.
“Foi um disco no qual ele conseguiu reunir as ideias que acreditava, a espiritualidade nas letras, e, ao mesmo tempo, reunir hits históricos, como Is this love”, resume Alexandre Carlo, vocalista do Natiruts.
Depois de tornar-se conhecido pelo engajamento político e pelo discurso militante em prol da paz civil e da ascensão da raça negra, Kaya moderou a postura de Bob com melodias e letras mais românticas. Muitos o acusaram de ter enfraquecido, de ter abandonado causas maiores.
Leve
“O álbum perde a pegada contestatória dos trabalhos anteriores”, decreta Fauzi Beydoun, a voz da Tribo de Jah. Segundo ele, os motivos para o “registro mais light” seriam, essencialmente, dois: “A perseguição política em cima dele estava intensa. Ele tinha sofrido um atentado, levou um tiro. Fora isso, a gravadora estava tentando abrir a cabeça de Bob. Queriam menos africanidade, já que o público de Bob Marley era, na maioria, branco”, argumentou.
Ele tem razão. Embora tenha sido, desde o início da carreira, figura mítica na Jamaica, onde nasceu, o sucesso comercial (e mundial) se deu a partir dos anos 1970, quando suas canções desembarcaram no mercado caucasiano dos Estados Unidos e da Europa, algumas entoadas por outros intérpretes (que impulsionaram a carreira do regueiro), como o americano Johnny Nash, que gravou Stir it up (antes de Bob, inclusive) em 1972, e o registro clássico de I shot the sheriff, de Eric Clapton, em 1974.
O DJ e produtor local, Hugo Drop, conhecido pela marca Regueiros do Cerrado e pelas festas ligadas ao gênero, lista uma terceira influência: “Nessa época, Bob teve um caso com Cindy Breakspeare (Miss Mundo 1976), com quem teve o filho Damian Marley. O fato, talvez, também tenha influenciado suas letras”, comentou. Damian é o caçula entre os onze filhos reconhecidos do cantor.
Apesar das críticas, a escolha parece ser acertada, pelo menos no quesito visibilidade. Kaya rendeu alguns dos maiores clássicos de Bob Marley, como Is this love, Sun is shining e a própria faixa título. “Surpreendeu todos pela genialidade”, arriscou Hugo. Passados 35 anos, o disco não gera maiores discussões, em virtude do teor apolítico, e descansa como uma das principais empreitadas de Bob Marley.
Kaya35th anniversary deluxe edition. De Bob Marley & The Wailers. Disco duplo. Tuff Gong / Island / Universal. Preço médio: R$50.
Em casa
No dia 3 de dezembro de 1976, três dias antes do concerto Smile Jamaica, organizado pelo primeiro-ministro jamaicano Michael Manley, Bob Marley foi alvejado em casa. O tiro acertou o peito de raspão e o braço esquerdo, sem causar danos profundos. A esposa e o empresário, que estavam no recinto, também foram atingidos e sofreram ferimentos mais sérios, mas se recuperaram. O atentado foi noticiado como resultado de perseguição política.
Bob brasileiroEm 2002, o baiano Gilberto Gil causou boa surpresa no mercado nacional ao aparecer com um álbum inteiramente devotado a Bob Marley, cujo título (Kaya N'Gan Daya) faz referência direta ao trabalho do jamaicano. Entre as faixas, clássicos do repertório de Bob, como Three little birds, Buffalo soldier, além do hino No woman, no cry. A versão escrita por Gil (Não chore mais), também gravada anteriormente, tornou-se um dos maiores sucessos da carreira do tropicalista.
Bob americano“Eu me sinto como se fosse a reencarnação de Bob Marley". A pretensiosa afirmação foi feita pelo rapper americano Snoop Dogg em entrevista à revista Rolling Stone. O compositor agora prefere ser chamado por Snoop Lion, nome que ele diz ter recebido de um padre rastafári, quando em visita à Jamaica. Segundo ele, ninguém assumiu o papel de Bob depois da morte do cantor, em 1981. Ele acredita que sua missão seja “continuar propagando a mensagem de paz de Bob”.
Erva censurada
O nome do disco não é por acaso. Kaya é uma recorrente gíria referente à maconha, principalmente pelos adeptos da erva. Sempre ligado ao uso da planta, Bob Marley defendeu publicamente sua utilização para fins filosóficos e transcendentais.
O fumo estava relacionado com o movimento rastafári e, segundo ele, seria uma das formas de aproximar-se da filosofia proposta. Um canal de comunicação com Jah (forma poética de se referir a Jeová, o Deus Altíssimo).
A crença o motivou a estampar, na contracapa do álbum, uma foto de um cigarro artesanal misturado a folhas da cannabis sativa (a angiosperma que gera a erva fumada). Lançado em 1978, em plena ditadura militar brasileira, a imagem foi censurada por aqui e substituída. No lugar, apenas uma tela em branco.
Alexandre Carlo, do Natiruts, acredita que a geração atual ainda cultua Bob Marley. Segundo ele, os jovens são bem informados quanto à carreira e aos sucessos do rei do reggae. Mas, no que tange às práticas religiosas de Bob, a mensagem parece ter sido corrompida: “A banalização e a distorção do seu discurso relativo ao uso da kaya continua no Brasil. Nos países desenvolvidos, ele não é visto como um doidão maconheiro. Lá, existe cultura suficiente para assimilar a pureza da obra dos grandes e verdadeiros transformadores da humanidade.”
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