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Segundo o autor, o ponto de partida para a construção dessa identidade foi na década de 1920, momento em que a emergência de um discurso regionalista de novo tipo foi iniciado pelas obras de Gilberto Freyre - figura basilar dessa invenção, devidamente ratificado pelos romances do baiano Jorge Amado. Nos outros segmentos artísticos, as paisagens de Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, o teatro de Ariano Suassuna, as películas de Glauber Rocha, e, sobretudo, as canções de Luiz Gonzaga desenharam e definiram esse Nordeste.
Dentre todos os artefatos culturais produzidos nessa parte de cima do Brasil, aparece aí a culinária como o elemento mais importante de uma dada civilização. É como se esses artistas vissem na comida o resultado de todo o processo de interpenetração cultural que forjou o Brasil em 400 anos. Fato é que boa música e boa comida sempre caminharam juntas. Ou, em outra análise, deleitaram-se juntas. E se existe uma carreira fonográfica na qual os alimentos e o verbo comer apareceram com uma fartura invejável, essa foi a de Luiz Gonzaga.
O Rei do Baião, que completaria 100 anos na data de ontem, 13, caso estivesse vivo, com sua sanfona em punho, sabia falar de comida e também da falta dela, como poucos. “Ele retratou a cultura nordestina de forma holística, e com muita naturalidade. Foi, na verdade, um grande porta-voz do Nordeste. Soprava a cultura da Região para o Brasil e, dentro dessa perspectiva cultural, o maior traço identitário que vai aparecer em suas canções não é a geografia nem a política, é a comida”, aponta o jornalista e pesquisador cultural carioca Fernando Gasparini.
E se a matéria é culinária, o Rei do Baião foi de Norte a Sul do País, cantou sobre as famosas pizzas da capital paulista até ao tucupi no tacacá de Belém do Pará. Mas, obviamente, foi nos substanciosos pratos da culinária nordestina que Gonzagão buscou referências. “Baião de dois”, título de uma de suas composições junto a Humberto Teixeira diz: “Vô juntá feijão de corda/ Numa panela de arroz/ Abdom vai já pra sala/ Que hoje têm baião de dois”.
No entanto, um dos ingredientes da receita chegou a causar desconforto no Rei do Baião. Em “Feijão cum Côve”, ele lamenta a falta de outros mantimentos na despensa. “Ai que será?/ Tenho pratando muita côve no quintá/ Ai o que será?/ Feijão com côve que talento pode dá?/ Cadê a banha?/ Pra panela refogá/ Cadê açúcar pro café açucará. Cadê manteiga?/ Leite e pão onde é que tá?/ Cadê o lombo?/ Cadê carne de jabá?”.
ALEGRIA NAS PANELAS
Apesar da lamentação de “Feijão cum Côve”, Gasparini ressalta que nas canções de Gonzaga, a comida aparece sempre de forma alegre, com abordagem festiva. “Salvo raras exceções, ele cantava um Nordeste triste. Ele preferia falar de fartura, o lado bom de ser nordestino, até com muito humor”, destaca o pesquisador. Em “Ovo de codorna”, por exemplo, o artista brinca com a impotência masculina causada pela idade avançada e os supostos efeitos afrodisíacos provocados pelo ingrediente. “Eu quero um ovo de codorna pra comer/ O meu problema ele tem que resolver/ Eu tô madurão/ Passei da flor da idade/ Mas ainda tenho alguma mocidade/ Vou cuidar de mim pra não acontecer/ Vou comprar ovo de codorna pra comer”.
Chegando ao Agreste pernambucano, “A Feira de Caruaru” soa como um guia do que se come (ou se comia) numa feira nordestina. “Tem massa de mandioca/ Batata assada, tem ovo cru/ Banana, laranja, manga/ Batata, doce, queijo e caju/ Cenoura, jabuticaba/ Guiné, galinha, pato e peru/ Tem bode, carneiro, porco/ Se duvidá... inté cururu”.
Mas, nem de longe, essa composição se aproxima da fartura da surrealista “Linforme Estravagante”, que versa: “Chapéu de arroz doce forrado com tapioca/ As fitas de alfenim e as fivelas de paçoca/ A camisa de nata e os botões de pipoca/ A ceroula de soro e as calça de coalhada, o cinturão de manteiga e o buquê de carne assada/ Sapato de pirão e a zenfilhon de cocada/ As meias de angu presilhas de amendoim, charuto de biscoito e os anelões de bolim/ Os óculos de ovos fritos e as luvas de toucin”. Comia-se muito bem nas músicas de Gonzaga.
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