segunda-feira, 3 de junho de 2013

"Anistia não autorizou perdão a torturadores", diz Fernando Coelho

Criada com a missão de “cascavilhar” a história recente de Pernambuco e rever as graves violações aos direitos humanos durante os “anos de chumbo”, a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara completa hoje um ano de existência. Até agora foram 20 mil folhas digitalizadas de documentos e depoimentos, 245 prontuários que estão em poder da comissão, além de coleções de particulares e 63 DVDs de depoimentos extras coletados no Nordeste. Em entrevista ao Diario de Pernambuco, o coordenador-geral da comissão em Pernambuco, Fernando Coelho, revela que seus integrantes têm feito um trabalho de investigação e desfeito algumas farsas montadas pelos agentes da repressão para encobrir os assassinatos e torturas a militantes de esquerda.

Sem meias-palavras, Fernando Coelho diz que o Supremo Tribunal Federal (STF) cometeu um grande equívoco ao estender a todos a anistia em função de um acordo que teria havido no Congresso. Esse acordo permitiria a volta dos exilados políticos em troca do perdão aos torturadores. Ele é categórico em afirmar que o pacto nunca existiu e diz acreditar que a Lei da Anistia deveria ser revista. “O que tem que mudar não é a Lei, mas a interpretação equivocada que foi dada a ela”, sentenciou. A comissão da verdade tem mais um ano para concluir o trabalho, podendo ser estendido por mais um.

Ao final, todo o material coletado será destinado ao Memorial da Democracia, no Recife. Também será montado em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) um observatório permanente de estudos sobre os direitos humanos na universidade.
Como o trabalho está sendo desenvolvido para esclarecer as denúncias durante o a ditadura?
O permanente contato entre os integrantes da comissão e distribuição de tarefas facilita muito o trabalho. Não é só um grupo, mas uma equipe que trabalha em conjunto. Na comissão nacional há mais dificuldade pelas pessoas serem de diferentes estado. Aqui temos duas reuniões ordinárias por semana (terças e quintas), as extraordinárias que são muitas, além de permanentes. A comissão está revelando fatos de uma história recente do país que estava sendo contada de forma errada.

Até agora quais informações e documentos foram coletados?
Temos quase 20 mil folhas digitalizadas de documentos e depoimentos. Esse acervo será destinado ao Memorial da Democracia, que deverá funcionar onde hoje é o Liceu de Artes e Ofícios. Além disso, há 245 prontuários em poder da comissão, sendo alguns do antigo Dops e três coleções de acervos de particulares que foram doados. Há ainda 63 DVDs de depoimentos extras coletados no Nordeste.

A sociedade terá acesso a esse material?
Esse material tem uma importância grande e não teria sentido se perder. A comissão vai deixar uma ação permanente nesse sentido. Fizemos uma parceria com a UFPE e, no final deste ano, a universidade fará um congresso internacional sobre os direitos humanos. O evento tem a participação da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Também será montado um observatório permanente na universidade para tratar de direitos humanos. Além dessa ação temporária da comissão, o trabalho terá continuidade através da instituição permanente, que é a universidade.

A Lei da Anistia deve ser revista, já que beneficiou todo mundo. Tanto os que foram torturados quanto os torturadores?
Na época da lei eu era deputado federal. Atuava como primeiro-vice líder do MDB e era da direção nacional do partido. Participei de toda a parte de discussão no Congresso. O grande equívoco do Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda está pendente de recurso, foi entender que a anistia devia ser estendida a todos em função de um acordo que teria havido. Esse suposto acordo permitiria a volta dos exilados em troca do perdão aos torturadores, aos terroristas etc. Essa versão que o Supremo acolheu é totalmente falsa. Se tivesse havido o acordo, o resultado não teria sido como foi com uma diferença de quatro votos. Perdemos por quatro votos. Se fosse um acordo, 95% dos deputados tinham votado a favor.
O senhor acredita que a Lei da Anistia será revista?
Sim. Ela não autorizou o perdão a torturadores, não. Pelo contrário. O que tem que mudar não é a Lei, mas a interpretação equivocada que foi dada a ela. O resultado de que não houve acordo está expresso no placar final com uma diferença apertada de quatro votos. Essa diferença de quatro votos é porque muitos da Arena votaram com a gente e outros saíram para não votar. Não se encontra um discurso na Câmara falando em acordo. Não houve esse contrato. Isso não aconteceu. Como podia haver esse contrato sem a participação da oposição? E a maior prova de que não houve acordo foi esse resultado. No parecer do relator, ele diz entender que a Lei de Anistia não se aplica aos crimes hediondos. 

O senhor acredita que o material coletado pela comissão servirá para que o governo reveja sua posição e reavalie as penas?
É importante que a sociedade tome conhecimento efetivamente do que aconteceu e cuide para que isso nunca mais se repita neste país. É fundamental que se restabeleça, individualmente, o conceito dessas pessoas que foram tidas como criminosas, tachadas de terroristas. O caso de Ricardo Zarattini é emblemático. Ele carrega até hoje o peso de ser lembrado indevidamente como o homem da bomba do Aeroporto dos Guararapes. Ele disse em seu depoimento que mais doloroso do que o período que passou preso, quando foi torturado, é a imagem que ele ficou de ser o homem da bomba do Guararapes. Infelizmente ele ainda hoje é olhado por algumas pessoas como terrorista.

Quais as principais dificuldades que a comissão tem encontrado?
Uma delas é em função do tempo para apurar os fatos. A comissão tem o prazo de dois anos, podendo ser prorrogado por mais um. Estamos nos organizando para concluir no prazo previsto. Além do fator tempo, muitas pessoas que poderiam contribuir e trazer novos elementos para a comissão já estão mortas. Estamos fazendo um resgate da história de algo que aconteceu há quase 50 anos. Outro problema é que no Brasil houve tempo demais para que pessoas envolvidas e que tinham interesse em apagar a história pudessem dar fim a documentos importantes para esclarecimentos dos fatos. Como não há crime perfeito, fica sempre o rastro.

Qual a diferença entre a comissão local e a nacional?
Temos feito um trabalho de parceria. Um trabalho que em algumas ocasiões é de detetive. No caso de Anatália Alves (que foi assassinda na ditadura) não havia notícia de onde estava seu corpo, nada. Como o nome dela não é comum oficiamos para todos os cemitérios e pedimos a relação das pessoas enterradas em determinado período que ela foi exibida como suicida. Pegamos a relação dos cemitérios e localizamos seu nome. Investigamos, fomos lá e eles tinham alterado seu nome. A comissão conseguiu comprovar que ela não tinha se suicidado, mas sido torturada e morta pelos agentes da repressão.

E o caso do Padre Henrique, que também foi emblemático?
O SNI, que era o órgão principal federal de investigação, fez a apuração do caso. Os militares tentaram fazer um acordo com a família do padre. Em troca de proteção no exterior, seus familiares deveriam dizer que ele tinha envolvimento com droga ou homossexualismo porque sabia-se que o padre fazia um trabalho com jovens na Arquidiocese, mas a família não aceitou. Na investigação, o SNI disse que não foi um crime político, mas praticado por um grupo de rapazes radicais que usaram inclusive carro da Polícia Civil e apontou quem estava envolvido. Eles mudam a versão verdadeira porque um deles era sobrinho do delegado que estava presidindo a investigação. Como o sobrenome de um deles coincidia com o do ministro da época, avaliaram que ficava mal para o governo e então abafaram o caso. A polícia não atuou para descobrir, mas para esconder. O governo tratou de retardar e acabou prescrevendo. Não julgaram porque prescreveu.

Uma das críticas que se faz é que a comissão não tem o poder de polícia e não pode prender ninguém. Isso não dificulta e enfraquece o trabalho?
Não. Isso até protege um pouco a comissão e dá mais isenção para que ela evolua. Dá mais isenção ao julgamento. Há a consciência de cada um. Cada um sabe se é culpado ou não. Estamos dentro de uma instituição democrática de direito. Essa questão de julgar não pode ser atribuída a uma comissão que se reúne por dois anos. Para assegurar que a Justiça julgue com isenção e independência é dado ao juiz garantias que nenhum de nós temos. Para um juiz poder julgar ele tem três garantias fundamentais que são inemovibilidade, irredutibilidade vitaliciedade. O estado de direito tem um setor encarregado de julgar que é o Judiciário.

Os que defendiam o regime militar reclamam que sofreram perseguição, alguns foram mortos pela esquerda, mas a comissão não investiga esse lado da história.
Os anistiados que faziam oposição ao governo foram julgados. Quantos pessoas não tiveram que sair do país, quantas foram presas e mortas? Os anistiados foram processados. Se você pegar o número de pessoas processadas aqui é um número enorme. Agora eles (os defensores do regime de excessão) não foram julgados. É um absurdo o sistema ter levado o país a uma condição que irmão brigava contra irmão como se fosse inimigo. A responsabilidade maior é de quem dividiu o país naquele momento. A anistia seria a consequência de reparar uma injustiça. Agora quem foi injustiçado? Perseguição, assassinato, tortura se começou a fazer no dia seguinte ao golpe. Prendia-se e depois é que iria saber se a pessoa tinha culpa ou não. 
Fonte: DP

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